Wednesday, October 05, 2016

“Éramos seis...”

Cemitério da Consolação, São Paulo. Uma tarde ensolarada em meados de maio de 1984.

Minha alma, então no frescor da fé, vaga entre as tumbas, envolta na oração e na contemplação da arquitetura mortuária, por vezes tão complexa quanto o mistério que representam seus monumentos: beleza, horror, leveza, tormento, despojamento, luxo... díspares ideias concretizadas no tijolo e na pedra.

Próximo ao corredor dos fundos, sombreado por comprida fileira de árvores, um túmulo se ressalta pela profusão de flores de um enterro recente. As flores da despedida, já todas murchas, símbolos da brevidade da vida que passou e se foi e fugiu daquele corpo que agora repousa sob a laje.

A curiosidade me aproxima da lápide. Procuro os textos das guirlandas, os nomes, os resquícios de homenagens. E identifico então o nome com o qual fora marcada a existência, sempre inapelavelmente curta, daquela pessoa que agora era apenas lembrança coberta por silêncios, pedras e flores murchas: Maria José Dupré.

Maria José Dupré! Ela mesma, a célebre escritora do livro cujo título tanto dizia sobre minha própria vida: “Éramos seis”...

Nunca li o romance, talvez por falta de coragem. Porque nós também, minha família, éramos seis: pai, mãe e quatro filhos. Naquele ano agora distante, ainda estávamos vivos, todos (hoje, metade já partiu). Mas se ainda “éramos” seis, não mais “estávamos” seis... Os caminhos já se haviam bifurcado. As escolhas, as diferenças, as dissensões já tinham separado as vias e apartado corpos, almas e vontades.

Passeando, absorto, olhar e pensamentos pelas flores fenecidas, percebi que algo se distinguia entre elas. Aproximei-me e identifiquei um cartão. Era um cartão endereçado à falecida!

Receando embora ofender a dignidade da morte, as mãos meio trêmulas, colhi o papel colorido, abri-o e li. Li aquelas palavras todas, reli, li mais uma vez, sofregamente, sentindo constranger-me o coração a cada frase. E chorei, chorei copiosamente!

Era um cartão da neta para a avó – provavelmente, escrito pouco antes do falecimento. Trazia um sentidíssimo pedido de perdão por um suposto abandono, por um afastamento que a missivista afirmava e reafirmava não ser real, ao contrário do que imaginava a avó!

Teria a destinatária lido a mensagem? Ou a indesejada das gentes a haveria chamado no percurso entre a postagem e a entrega? Nunca o soube... Saberei um dia?

Vacilei entre devolver aquele papel à tumba e seu silêncio – sabendo que assim o estaria destinando ao mesmo inexorável perecimento que acaba por cobrir tudo e todos – ou guardá-lo. Sim, guardá-lo comigo, para sempre, como preciosa lembrança, como relíquia do tempo em que ainda “éramos seis”, como alerta exemplar da dor de alguém que se lastima por afastar-se dos que o precederam no sangue...

Naqueles tempos de fé viva, vívidos também eram meus escrúpulos místicos. Decidi então deixar ali o cartão, para morrer junto com as flores, respeitando assim o que provavelmente devia ser o desejo da mão que o tinha misturado aos crisântemos...

Jamais essa lembrança se apagou da minha memória. Construí mesmo a imagem da neta entregando ao túmulo – chorosa, coração pesado, alma em remorso – o cartão que não chegara ao destino... Ao longo desses anos todos, recordei a imagem e o sentimento que me revisitou, dolorido, sempre que ouvi ou li ou pensei sobre o livro ou sua autora.

E apenas agora, passados mais de 32 anos, escrevo para contar esta história. Ainda hoje, imagino encontrar a neta, a autora daquele cartão que me marcou por décadas, e conversar sobre o fato, perguntar, conhecer a história por trás dele.

Nunca li o romance, talvez por falta de coragem. Tê-la-ei algum dia, ainda mais agora, quando já não somos seis?

Sunday, August 14, 2016

ISSO DE SER PAI...

Hoje, completei meu 19º ano de pai. Ou 20º, se se puder considerar o filho ainda no ventre, a promessa depois cumprida.

E, entretanto, não houve ainda acúmulo de decênios que me trouxesse explicação para isso de ser pai. Essa improvável expansão de si mesmo a partir do outro, esse estender-se para fora de si, esse abrir-se em céus e abismos, glórias e tormentas antes sequer imagináveis.

Que encanto é esse, incompreensível, a desdobrar-se sobre outrem de tal modo que basta um sorriso bobo, um gesto mínimo, uma palavra mal balbuciada, um passo vacilante para nos fazer sentir divinos?

O que é isso, tão forte, que nos muda a noção do tempo? A vida passa a dividir-se diferente, em tempos de relação: o tempo da dependência total, dos sentimentos expressos em olhares e sorrisos, em gemidos e choros. O tempo das tentativas. O tempo da proteção. O tempo de virar gente.  O tempo do desabrochar com qualidades próprias. O tempo de descobrir outros mundos. E o mais difícil tempo, o do afastar-se em busca de outros braços.

Meu pai já se foi, faz tempo. Hoje, gostaria de poder dizer-lhe tanto! Que agora eu entendo. Que agora eu queria pedir tantos perdões – e hoje sei que receberia todos! E que hoje eu não negaria abraços, e convívio, e conversas, e tardes “inúteis” de apenas estar junto.

Mas foi-se o tempo. E gira essa roda viva, que passa adiante a dupla dor: de não ter sido ontem como hoje se queria e de saber que não se receberá hoje o que ontem foi sonegado.

Entretanto, com as dores de mão dupla só compreendidas depois da paternidade, vêm tantas alegrias, tantas, que não há dor que as suplante. E nessas emoções impossíveis é que a alma se dilata e torna-se capaz de qualquer coisa, em nome de outro ser.


Como elo dessa divina corrente de vida, hoje, só posso dizer: obrigado, meu pai, por me fazer filho! Obrigado, meu filho, por me fazer pai!

Monday, August 08, 2016

Gênero biológico, identidade e sexualidade

É fato que, quando um ser humano nasce, porta um gênero biológico convencionado, definido primariamente como masculino ou feminino de acordo com a aparência de seus órgãos genitais. É certo, também, que seres humanos carregam diferentes cromossomos, e que, na genética humana, foram identificados os cromossomos sexuais, classificados como XX para os indivíduos do sexo feminino e XY para os do sexo masculino. Ou seja, há uma diferença biológica que determina o que convencionalmente se chama de indivíduo do sexo masculino ou feminino. Claro ainda que, anatomicamente, a distinção pode ser bem mais complexa, porque os órgãos genitais têm apresentações diferenciadas quase ao infinito (incluindo os genitais das pessoas chamadas intersexo, com características intermediárias em relação aos dois sexos), mas, na grande maioria dos casos (cerca de 99%), é possível distinguir anatomicamente um ser humano conforme essa distinção binária de sexo (feminino e masculino).

Entretanto, os papéis sociais destinados a indivíduos com uma ou outra carga genética não estão diretamente relacionados ao gênero biológico. Eles são social e culturalmente definidos. Dizer que “homem não chora” não decorre de um determinismo biológico, é uma definição cultural. Defender que “lugar de mulher é na cozinha” não tem relação com o sexo biológico, mas com uma designação social. Quando Simone de Beauvoir diz que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, obviamente, não quis dizer que a mulher não nasce biologicamente definida como tal, mas sim que seu papel social de mulher é construído culturalmente.

O papel social e o “comportamento esperado” de um homem e de uma mulher não são intrínsecos ao gênero biológico, mas são cultural e socialmente definidos. Numa sociedade machista, a mulher terá sempre um papel social inferior. Portanto, é possível e desejável lutar por uma mudança cultural que promova a igualdade entre os gêneros biológicos, de modo que as funções sociais de cada um não sejam pré-determinadas culturalmente e que tanto homem quanto mulher possam exercer qualquer papel social que desejem.

No campo da afetividade, a questão é ainda mais complexa. Ao contrário do que possa dizer o senso comum, a afetividade amorosa e a atração sexual também não são biologicamente pré-determinadas. As pessoas podem sentir atração e desejo sexual tanto por alguém do mesmo sexo quanto do outro. Não há uma relação direta, pré-determinada, entre sexo biológico e orientação sexual. Entretanto, existe, em diferentes tempos e lugares, maior ou menor compreensão e aceitação da possibilidade de que um indivíduo de determinado gênero biológico sinta atração sexual por alguém do mesmo gênero (o que sempre existiu, em todos os tempos e lugares, porque é uma das possibilidades da natureza humana).

Entretanto, a cultura predominante definiu previamente de modo binário a sexualidade humana, o que é de um reducionismo atroz e completamente avesso à realidade concreta. Se, do ponto de vista biológico-cromossômico, pode caber esse binarismo na maioria dos casos, ele é totalmente inadequado no que diz respeito à afetividade. Porque a afetividade humana é infinitamente mais rica e variada do que esse binarismo. 

Ademais, há a questão da identidade de gênero, que diz respeito ao modo como a pessoa identifica a si mesma. Alguém pode identificar-se como mulher, ainda que tenha genitália masculina e heteroafetividade. Essa é a inesgotável diversidade humana, nada binária! Assim como há homens com genitália masculina, há homens com genitália feminina, e vice-versa. E variações intermediárias.

Por conta da opressiva imposição cultural, mesmo pessoas que não se encaixam no binarismo predominante são levadas a tentarem se “encaixar” nele, para alcançarem alguma aceitação social. É o caso de pessoas que se veem, por exemplo, como “homem em corpo de mulher” e, tão frequentemente, buscam uma transformação corporal para adequar o corpo à mente. É incrivelmente maldosa essa imposição social que faz a pessoa autorrejeitar-se, pois o desejável seria que tanto ela própria quanto a sociedade entendessem e aceitassem que não existe “homem em corpo de mulher”, mas uma infinidade de identidades que não precisam encaixar-se nesse binarismo. Um ser humano pode ter genitália masculina ou feminina, corpo biológico de “homem” ou de “mulher”, inclinação afetivo-sexual para homens ou mulheres, sem que seja necessária uma “correspondência” binária prévia. Para o bem da humanidade, é preciso que haja a compreensão desse fato. É triste pensar que alguém se sinta inadequado porque seu corpo não corresponde à ideia que a sociedade exige de alguém com sua aparência ou genitália, ainda que não seja condizente com seus afetos, desejos e identidade. Quantas pessoas não se mutilam e transformam artificialmente seus corpos para se adequarem a essa imposição social! É triste.

Num panorama ideal, a sociedade deveria aceitar, definitivamente, que há inúmeras identidades e afetividades. Não importa como seja o corpo biológico: a sexualidade e a afetividade humanas estão muito além da divisão animal entre “macho” e “fêmea”. A infinita variedade humana é legítima e natural e precisa ser aceita. Há seres humanos biologicamente “machos” que não se inclinam aos papéis sociais previamente destinados ao macho, ou que têm atração sexual por homens; há mulheres que têm pênis, há homens que possuem vagina e útero. E essas variações são uma riqueza do gênero humano, são normais e naturais e devem ser socialmente aceitas e respeitadas. A superação do binarismo será um sinal da evolução cultural da humanidade.

Monday, July 25, 2016

Língua Portuguesa e seu uso: quem define o que é “correto”?

O objetivo do uso da língua

O objetivo da língua é a comunicação. Aprendemos desde cedo a nos comunicarmos utilizando determinada língua, que é também fundamental para a estruturação de nosso pensamento e a formação da nossa visão de mundo.

A língua utilizada para comunicação entre os brasileiros é a Portuguesa, que se tornou língua oficial da colônia por ordem do Marquês de Pombal, então primeiro ministro de Portugal, em 1758. A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu art. 13 que “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”, ressalvando, entretanto, que será “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” no ensino fundamental regular (§ 2º do art. 210).

A Língua Portuguesa é aquela utilizada pelos países que se identificam como usuários dela. Existe uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – aqueles que identificam a si mesmos como parte dessa comunidade. Portanto, a Língua Portuguesa é o idioma falado nesses países, que têm buscado uniformizar sua utilização na modalidade culta formal.

Uma vez que o uso da língua é a comunicação, para que se identifique alguém como usuário dela, basta que esse alguém a utilize como instrumento de comunicação. Uma pessoa que jamais frequentou a escola é perfeitamente capaz de comunicar-se em português. Um analfabeto consegue comunicar-se na sua língua materna. Se, numa conversa com um compatriota, um brasileiro disser: “Nóis fumu lá onte”, certamente será entendido tanto quanto se disser “Nós fomos lá ontem”. Entretanto, é possível que se comunique de um modo que seja considerado “errado” por algumas pessoas. Quem poderá atestar que uma forma é “correta” e outra não? Embora haja diferentes “falares”, diversos modos de se comunicar empregando a Língua Portuguesa, alguns são considerados inadequados (ou “errados”) conforme as circunstâncias. Se na redação de um concurso público, por exemplo, alguém escrever “Nóis fumu lá onte”, certamente perderá pontos. Por que é considerada “correta” apenas a “modalidade culta formal”?

Quem define o “uso correto”?

A língua é uma instância de poder. O domínio de determinada modalidade da língua, aquela considerada o “padrão culto formal”, concede poder e prestígio. A determinação das regras dessa modalidade parte da elite dominante, que estabelece um padrão considerado “correto” – fundado especialmente no uso da língua escrita na literatura –, em contraposição a muitos usos que são efetivamente eficazes na comunicação cotidiana, mas que são taxados como “incorretos”, ainda que cumpram perfeitamente a função básica da língua (a comunicação).

Quem diz qual é o “português correto” no Brasil? Juridicamente falando, há algumas normas legais que estabelecem padrões. Em termos de ortografia, o Decreto Nº 6.583, de 29 de setembro de 2008, que “promulga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990”, estabelece regras oficiais para a ortografia no país. Tal decreto cita como instância importante para o estabelecimento dos acordos ortográficos entre os países de Língua Portuguesa a Academia Brasileira de Letras (ABL). Efetivamente, o art. 1º. do Decreto 6.583 menciona a colaboração da ABL para a elaboração de um vocabulário ortográfico comum da Língua Portuguesa. Portanto, embora seja entidade privada, a ABL tem reconhecimento oficial para elaboração desse vocabulário ortográfico. Pode-se então dizer que a grafia correta das palavras em língua portuguesa no Brasil é a que está consignada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa elaborado pela ABL.

Há ainda outra instituição importante que constitui foro oficializado para algumas questões relacionadas ao uso da Língua Portuguesa: a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Embora seja também uma entidade privada, alguns dispositivos legais brasileiros a indicam como definidora de normas e padrões técnicos. Especificamente quanto à redação de textos científicos, a ABNT elabora diversas normas e é reconhecida como entidade capacitada para definir tais normas, mesmo quando de uso não obrigatório do ponto de vista legal.

E quanto à sintaxe e todas as demais regras sobre o uso “correto” da língua? Não há uma definição legal oficial. Considera-se a norma “correta” aquela consignada pelos gramáticos, que as definem a partir da observação do emprego da língua – tomando em conta principalmente o uso na literatura escrita por autores consagrados.

Um campo de divergências


A gramática normativa, que estabelece as normas do uso “correto” do idioma na modalidade escrita, está nos compêndios de gramática, escritos por estudiosos da língua. Tais compêndios baseiam-se no uso corrente, na origem e no desenvolvimento histórico da língua, em determinadas relações lógicas etc. Entretanto, como não existe uma “gramática oficial”, há inúmeras divergências entre esses estudiosos. Alguns podem ser considerados mais “conservadores”, atendo-se ao uso da língua pelos escritores consagrados (em geral, utilizam exemplo apenas de escritores já falecidos), enquanto outros são mais abertos às novidades da língua – que surgem no uso cotidiano –, aceitando tendências que aos poucos vão se impondo.

Em muitas questões, as regras a serem utilizadas em determinada situação dependerão também do estilo. Um bom exemplo é o uso da vírgula, tema cujas regras variam bastante entre as diferentes visões dos gramáticos. O emprego da vírgula deve reger-se por questões de clareza e eufonia. Em muitos casos nos quais sua utilização é facultativa, a decisão se dará por escolha estilística. Nesse caso, a classificação do uso como “correto” está também no âmbito dos estudiosos de estilística e não apenas na gramática normativa. O uso exagerado de vírgulas diminui a fluidez da leitura, enquanto a falta delas poderá gerar textos com problemas de clareza. Por exemplo, nas frases seguintes:

- “Haverá, ainda, uma palestra de encerramento” – embora o emprego da vírgula, de acordo com muitos gramáticos, seja facultativo nesse caso, trata-se de um bom exemplo para indicar o quanto as vírgulas desnecessárias prejudicam a fluidez textual.

- “O homem que fugiu era o assassino” ou “O homem, que fugiu, era o assassino” – nesses casos, o uso ou não da vírgula altera o sentido da frase, que deverá ter ou não vírgulas conforme o significado atribuído, para clareza do texto.

No campo semântico, há incontáveis casos de emprego de vocábulos antes considerados como impropriedade vocabular que acabam sendo aceitos pelos estudiosos da língua. Por exemplo, a palavra “abordar”, como empregada nesta frase: “O palestrante abordou o tema em profundidade”. A palavra “abordar” tem sentido original relacionado à navegação (“chegar a bordo”). Se estudiosos mais conservadores antigamente consideravam inadequado o uso em outro contexto, atualmente, a prática dos usuários da língua consagrou sua utilização com sentidos diversos do original.

Como definir um padrão?

Portanto, em um grande número de casos, há usos que os mais “puristas”, os mais “conservadores”, considerarão “incorretos”, enquanto outros aceitarão. No caso de uma instituição qualquer, pública ou privada (um jornal, uma empresa, um órgão público, por exemplo), que queira adotar na sua comunicação escrita um determinado padrão, o mais adequado seria a eleição de um compêndio de gramática específico ou, dependendo do caso, até mesmo de um manual de redação jornalística já pronto. De qualquer forma, considerando-se o emprego da língua como questão de reputação e poder, o uso de um padrão mais “rigoroso” da língua em sua norma culta formal concede mais prestígio, visto que um texto dentro dos padrões formais mais rigorosos é “inatacável”, enquanto um mais “permissivo” poderá ser criticado pelos “puristas” da língua. Obviamente, no que diz respeito ao universo vocabular (virtualmente infinito), este deve estar adaptado ao nível do público que se deseja atingir.

Por fim, relembre-se: não existe, com exceção de algumas poucas áreas específicas, uma “definição oficial” do que seja correto ou não. Tal definição é dada pelos estudiosos que se capacitaram acadêmica e profissionalmente para opinar quanto ao uso apropriado da Língua Portuguesa.

Saturday, July 23, 2016

Estarei no estádio no próximo jogo

Quando o homem de preto assoprar a latinha para o início da peleja, eu estarei lá.

Estarei no meio da torcida, vibrando, gritando, aplaudindo, incentivando o meu time.

Não importa qual será o jogo, que time estará do outro lado, qual o campeonato.

Pode ser um time “sem série” na Copa Sul-Americana, na Copa do Brasil, na Sul-Minas ou Sul-Minas-Rio. Pode ser um Torneio da Morte ou um “ruralzão”. Não importa.

Talvez o jogo seja ruim. Talvez os jogadores do meu time não joguem bem. Mas eu estarei lá.

Não vou ao jogo porque é um jogo bom, porque o adversário é grande ou porque o campeonato é importante. Vou porque o meu time vai jogar. E eu faço parte dele. Não há time sem torcida, assim como não há artista sem plateia.

Não vaiarei qualquer jogador que esteja vestindo a camisa do meu time durante o jogo. Tentarei incentivá-lo, cobrarei quando necessário, pedindo “garra!” Mas enquanto ele estiver lá, coberto com o mais belo uniforme de todos os tempos, terá meu incentivo. Se depois da partida estiver claro que ele não se esforçou como deveria, aí sim, terminado o embate, talvez eu vaie, talvez eu peça mais empenho.

É claro que eu quero a vitória, o título, a grande jogada, o craque. Mas acima de tudo quero viver a emoção de estar lá, aconteça o que acontecer. Sairei feliz ou triste, talvez entusiasmado, quem sabe arrasado. Mas sairei mais humano, porque vivi as emoções desse esporte fantástico, metáfora da vida.


Estarei no estádio no próximo jogo. E não irei porque o jogo será bom ou importante. Irei porque o meu time estará lá, e eu faço parte dele.

Thursday, July 14, 2016

“Afazeres”

Dia de folga durante a semana.
Dou uma olhada na lista de afazeres.
Fazer essas listas é hábito herdado de meu pai, que andava com cartões no bolso onde anotava tudo que precisava fazer a cada dia, riscando as tarefas cumpridas. A cada dia, renovava a relação, incluindo coisas da véspera que não tinha conseguido deslindar.
Minha lista tem várias coisas que normalmente não consigo fazer porque nos “dias úteis” trabalho em tempo integral.
Meu olhar pousa sobre o pedaço de papel, mas não meu pensamento.
Nenhuma “tarefa” faz sentido: daqui a 50 anos, não fará qualquer diferença eu tê-las realizado ou não.
Abro uma cerveja e ligo o som: “Every breath you take”.
Paro tudo e fico simplesmente ouvindo a música e sorvendo devagar a cerveja.
Nada pode ser mais importante para eu fazer agora.

Thursday, June 23, 2016

DIREITA E ESQUERDA – O QUE É ISSO?

Você é de direita ou de esquerda? Por quê?
Tenho lido e ouvida tantas ideias confusas a respeito desses conceitos que me arrisco a escrever aqui sobre eles, esperando ser de alguma forma útil… O texto abaixo é aberto a contribuições – espero correções e observações pertinentes.
1) Esquerda e direita são sempre conceitos relativos, nunca absolutos. Evoluem e variam conforme o tempo e o espaço. Não são preto e branco, são tons de cinza. Em relação ao preto, o cinza é claro; em relação ao branco, o cinza é escuro. Esquerda e direita definem-se uma em relação à outra.
2) Historicamente, o termo “esquerda” tem sido carregado de conotação negativa. A língua também marca essa conotação.
Na Bíblia, Cristo “...está sentado à direita de Deus Pai Todo Poderoso, de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos.” E no dia do Juízo … “Quando, pois, vier o Filho do homem na sua glória, [...] diante dele serão reunidas todas as nações; e ele separará uns dos outros [...]. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: – Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; [...] Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.” No alto do monte Calvário, ladeando Jesus crucificado, estavam o bom ladrão, à direita, que no mesmo dia estaria com ele no Paraíso, e o mau ladrão, à esquerda.
Em latim, direita é “dextera”, esquerda é “sinistra” – origem da palavra “sinistro”. Os canhotos, em idos tempos, eram tidos como anormais e amaldiçoados.
Uma pessoa “gauche” (“esquerda”, em francês), é “errada”, fora do normal. “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” (Carlos Drummond de Andrade)
Dizer de alguém que é uma pessoa “direita” é elogiá-la. Fazer algo “direito” é fazer bem feito. Etc...
Portanto, carregamos inconscientemente a associação da palavra “esquerda” com o que é errado, ruim.
3) Origem histórica do termo na política
Em termos políticos, contemporaneamente, a divisão entre direita e esquerda originou-se do posicionamento dos parlamentares na Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa. Os conservadores, defensores do Antigo Regime, ficavam à direita, enquanto os que queriam mudanças (mais ou menos radicais, conforme os diferentes grupos) sentavam-se à esquerda.
Naquele período de grande efervescência, havia uma enorme variação dentro da escala político-ideológica. O pensamento mais conservador era o dos que defendiam a manutenção de uma monarquia de direito divino, ligada à Igreja Católica. Defendiam uma sociedade teocêntrica e altamente hierarquizada. Esses poderiam ser chamados de “extrema-direita”.
No extremo oposto, estavam os anarquistas. Na Revolução Francesa, a vitória final foi do centro – composto majoritariamente pela burguesia em ascensão.
Portanto, na origem histórica contemporânea dessa divisão política, o direitista extremo era o defensor da monarquia de direito divino, com sociedade altamente hierarquizada e Estado (na pessoa do soberano) forte, absoluto. O esquerdista extremo era o anarquista, aquele que defendia a eliminação de todo governo e a liberdade individual total.
Eliminada a monarquia de direito divino com o desenrolar da Revolução Francesa (e suas idas e vindas pendulares), o que a subsistiu foi a república burguesa. E assim, nessa evolução histórica, a república burguesa (esquerda em relação ao Antigo Regime) passou a ocupar o lugar mais à direita no espectro político. Eliminavam-se os privilégios da nobreza, mas não em favor do povo e sim da burguesia (detentora de um ascendente poder econômico).
No século 20, a Revolução Russa fez do socialismo comunista capitaneado pela União Soviética o representante mais à esquerda em relação à república burguesa. Nesse sistema bipolar, era fácil alguém localizar-se politicamente pelo alinhamento com o “Ocidente” (o capitalismo estadunidense) ou com o “Oriente” (o socialismo soviético).
4) Liberdade x Igualdade
Buscando-se o lema da Revolução Francesa – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” – pode-se definir grosseiramente o dilema entre os dois regimes da Guerra Fria como a prevalência da Liberdade sobre a Igualdade (caso do capitalismo) ou da Igualdade sobre a Liberdade (caso do socialismo). Do ponto de vista econômico, no capitalismo, todos devem ter a liberdade de fazer o que quiserem – o que gera grandes desigualdades; no socialismo, todos devem renunciar a grandes parcelas de liberdade em benefício da igualdade.
No atual panorama mundial, as coisas já não são assim tão simples e dicotômicas. Na situação pré-Revolução Francesa, a defesa da monarquia católica de direito divino estava acompanhada da adoção da moral cristã, enquanto a anarquia pressupunha também a libertação em relação à moral religiosa. O Estado forte da “direita” defensora do Antigo Regime englobava a vigilância da moral – e, portanto, a limitação das liberdades individuais em nome dessa moral (no caso, a moral católica). Contemporaneamente, o liberalismo econômico não esteve necessariamente atrelado ao liberalismo moral. Se a república burguesa decepou o topo da pirâmide (a nobreza) em favor de um regime econômico menos engessado e uma hierarquia social com maior mobilidade e menor desigualdade, sua moral manteve-se bastante atrelada à moral cristã.
Relativamente ao Antigo Regime (monarquia absoluta de direito divino), a república burguesa estava à esquerda. Mas, em relação ao socialismo soviético, passou a representar a posição conservadora e mais à direita. Assim, grupos economicamente “conservadores” (da república burguesa), que pregam a liberdade econômica, são normalmente também conservadores do ponto de vista moral (quando pareceria normal defenderem a liberdade individual também nesse ponto). E nem mesmo a esquerda economicamente coletivista, no socialismo real (ou seja, em países nos quais se adotou um regime comunista), livrou-se da moral burguesa. Já os grupos de esquerda em países capitalistas são mais tendentes a rechaçar a moral judaico-cristã, defendendo a liberdade individual do ponto de vista moral (embora – contradição – o socialismo, do ponto de vista econômico, pregue a restrição à liberdade em favor da igualdade).
Obviamente, a extensão deste texto exige uma abordagem muito simplificada (e, portanto, um tanto simplista), mesmo porque a gradação de posições políticas e morais é muito ampla e variada para se classificar apenas em “esquerda” e “direita”. Nessa simplificação, pode-se dizer que, nas condições de hoje, quanto mais tendente à máxima liberdade econômica individual (e, portanto, à mínima intervenção estatal no sistema econômico), tanto mais “de direita” será a pessoa. E, no sentido contrário, quanto mais tendente a apoiar a intervenção estatal para o controle da economia (de modo a favorecer o interesse coletivo em detrimento dos interesses individuais), tanto mais “de esquerda”. No âmbito moral, será tão mais “direitista” quem mais defender o respeito às regras morais judaico-cristãs (família tradicional, repressão à sexualidade, proibição do uso de drogas etc. – ou seja, o controle das ações morais individuais). E tão mais “esquerdista” será quem mais defender a liberdade individual nessas questões. Ou seja, há uma flagrante contradição entre a defesa da liberdade econômica e da liberdade moral individual nos conceitos atuais de “direita” e “esquerda”.
O Estado forte, que cerceia as liberdades individuais, existia na monarquia absolutista. E também na ditadura do proletariado. E no regime militar brasileiro (estatizante e nacionalista). Hoje, a defesa do Estado intervencionistas é pauta da esquerda.
Nesse panorama um tanto confuso, há os “liberais autênticos”, que adotam a defesa tanto da liberdade econômica quanto da liberdade individual, argumentando ser essa uma posição mais coerente do que a posição “conservadora” tradicional da “direita”, uma vez que repudiam a intervenção estatal tanto na economia quanto no controle das liberdades individuais.
Pois é, as coisas não são tão simples… Hoje, no Brasil, um partido teoricamente “de esquerda”, como o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira, vejam só o nome!) defende as privatizações, pauta tipicamente de direita.
Na política brasileira, quais partidos são de direita ou de esquerda? Teoricamente, a resposta deveria estar nos programas partidários. Mas a realidade é que o comportamento dos políticos frequentemente tem muito pouco a ver com os programas partidários. Na quase totalidade, os partidos brasileiros são amontoados de gente com sede de poder, sem real interesse programático. A ponto de partidos com programas francamente de esquerda, chegando ao poder, tomarem atitudes abertamente “direitistas”. Seria muito bom se os eleitores conhecessem os programas partidários e passassem a cobrar dos políticos ações coerentes com os programas de suas agremiações. Alás, ler os programas pode assustar muita gente...