Monday, August 06, 2007

Um passeio pela Revolução Bolivariana

Tomás Barreiros

O mar do Caribe é lindo. Mas não foi por causa dele que passei por Caracas. Minha viagem, de trabalho, era até Santo Domingo, República Dominicana, para um congresso científico. Mas eu não podia passar por cima da Venezuela e sua revolução bolivariana. Não. Se algo de realmente novo está acontecendo por lá, eu não podia cruzar indiferente o espaço aéreo venezuelano. Haveria mesmo uma esperança nova surgindo no continente? Tratei de arranjar uma escala de três dias em Caracas.

Em apenas três dias, é claro, não é possível captar muita coisa, mas pelos menos – pensei – daria para respirar um pouco os ares da revolução. E avaliar se valeria a pena encher os pulmões...


Quem se aproxima do Aeroporto Internacional Simón Bolivar vê de cima o magnífico mar caribenho. A primeira impressão é boa. Mas o percurso do aeroporto até a capital venezuelana deixa o mar para trás e apresenta novas impressões. [Antes, entre baixar à pista de pouso e sair do aeroporto, há o inevitável filtro do não-lugar: é preciso perder o próprio gosto nos salões gelados (sempre gelados, por mais tropicais que sejam os países, pois não se trata de um frio climático) dos edifícios cosmopolitas, que poderiam estar em qualquer lugar do planeta. É o ritual do despojamento cultural em honra ao deus da globalização. Quem ensina os arquitetos a fazerem aeroportos sempre iguais? Quem seleciona para as alfândegas pessoas sempre iguais? Quem lhes ensina a dizer sempre as mesmas palavras?] Na rodovia que liga o aeroporto à cidade, uma ponte está caída. Há duas opções: um desvio sinuoso – dependendo da hora, em meio a um paciente engarrafamento que contorna as obras da ponte substituta – ou um caminho que sobe a montanha serpenteando. Este último trajeto faz lembrar o Brasil: uma vista maravilhosa a partir do morro coberto de favelas. A pobreza grita logo na porta de entrada do país. Já pude me sentir em casa.


Caracas não é bonita. É suja. Barulhenta. A miséria não se esconde em Caracas. Muita gente pobre, mendigos por toda a parte. A prostituição também não. Está nas ruas. Nada diferente do que se vê cotidianamente no Brasil.


Mas algo de novo se passa na Venezuela...


No corre-corre do dia, tudo parece andar normalmente. Para quem olha de fora, a impressão é de que a vida continua como sempre deve ter sido. Caracas é barulhenta. O som estridente, contínuo das cigarras compete com as buzinas dos carros e as sirenes de não sei que tantas ambulâncias e carros de polícia ou bombeiros. O caraquenho aprecia os sons das buzinas: basta qualquer pretexto para os motoristas a usarem em looooooooooongos uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiivos. Sirenes. Buzinas. Cigarras. Barulho.


Grafiteiros devem ter muito trabalho na Venezuela. Há muitos muros pichados. E são belos grafites, bem feitos, coloridos, alardeando a revolução bolivariana que chegou, está aí e vai progredindo. A vida cotidiana parece não se importar com os avisos dos muros.


PROPAGANDA
Tentei largar de lado, por um tempo, meus confortos burgueses. Busquei uma região movimentada, central, borbulhante. Um hotel barato, muito barato, de mochileiros. Instalações precárias. Sem água quente. Sem café-da-manhã incluído na diária. Um casal de meia-idade dirige o hotel, que funciona como uma espécie de albergue da juventude, recebendo gente descompromissada. Ao lado, um hotel de alta rotatividade. Trinta metros além, de madrugada, um “ponto” de prostitutas e travestis. Um ótimo QG de onde observar a revolução bolivariana.


A propaganda oficial da revolução é intensa. Está por toda parte: muros, metrô, outdoors, cartazes, painéis. Nos meios de comunicação, quando não se é a favor, hay que ser contra. Examinar uma banca de jornais é ter a impressão de que a Venezuela é o país de maior liberdade de imprensa do mundo. São capas e mais capas de diários atacando o presidente e sua tentativa de revolução popular – não raro, editoriais de capa inteira para criticar alguma atitude do comandante bolivariano. Claro que há também os periódicos governistas, mais discretos na defesa que os outros no ataque.


A luta nos meios de comunicação parece refletir um país dividido. Conversando com pessoas variadas, encontram-se posições extremas e dificilmente alguém no centro. Sentado num ônibus ao lado de duas donas-de-casa, passadas dos 60 anos, perguntei de chofre à mais próxima: “O que a senhora acha do Chávez?” A mulher se arrepiou. Numa irritação contida, não queria falar. Sua amiga interveio: “Ele está fazendo a revolução rumo ao nada”, numa alusão ao slogan bolivariano, “Rumo ao socialismo”. O percurso era longo, fui conquistando-lhe confiança. Ela justificou: “Não sei se essas pessoas em torno de nós são espiões. Em casa, falo o que quiser, mas não em público. Só de ouvir esse nome o sangue já me ferve nas veias.” O que aconteceria se houvesse “espiões” perto de nós? Ela não respondeu, deu de ombros, como se fosse evidente – ou irrespondível.


A elite, em geral, não se conforma com o fracasso da greve geral que, no final de 2002, tentou derrubar Chávez. O país parou por dois meses, mas o presidente agüentou firme. “Em qualquer país, uma greve dessas teria derrubado o presidente”, lamenta a consultora Sandra Orjuela Córdoba, contrária a Chávez. Colombiana, ela é casada com um conhecido advogado venezuelano e mora em Caracas. Insegura quanto ao futuro da Venezuela, Sandra tem as coisas ajeitadas para uma possível necessidade de voltar à Colômbia para fugir do “socialismo do século 21”. Suas críticas nada poupam no governo atual. Diz que há muita corrupção e favorecimento a amigos do poder. Ataca a publicidade personalista de Chávez e afirma que, muitas vezes, a propaganda de uma obra é mais cara que a própria. Ela conta que, durante a greve, o governo demitiu “arbitrariamente” muitos funcionários da estatal venezuelana de petróleo (foram 5.000), trocando-os por gente comprometida com o chavismo.


Um desses novos funcionários é o jornalista Carlos Aquino. Filho de um guerrilheiro comunista atuante nos anos 60, Aquino diz ter crescido lendo Marx. Entusiasta da revolução, exalta as conquistas pós-Chávez: crescimento do poder aquisitivo da população de renda mais baixa, mais de dois milhões de alfabetizados, um programa de medicina gratuito (segundo modelo e com apoio cubano) acessível aos pobres desde a assistência primária até as especializações médicas. Ele garante que há plena liberdade de expressão no país e que o governo deu impulso à comunicação alternativa para combater os monopólios informativos (argumentação construída para defender a guerra chavista contra a RCTV). Mesmo a possibilidade de reeleição indefinida de Chávez é vista por ele com bons olhos: “Isso é um dos pontos mais importantes [para o sucesso da revolução]. A personalização da revolução em torno de Chávez tem prós e contras, mas ele é o líder indiscutível.”

“MESSIAS”
E por falar em personalização, a face do comandante bolivariano está estampada por toda parte, inclusive e especialmente na propaganda oficial, que é também exaltação da figura de Chávez. Todo impresso oficial traz frases como “Com Chávez, o Povo é o Governo”, “Com Chávez, todos governamos”.

O guia turístico José Flores tem uma visão mais crítica do novo bolivarianismo venezuelano. Defensor da revolução socialista, crê que há exagero no personalismo chavista. O maior problema, entretanto, acredita ser a corrupção, que não tem sido combatida como deveria. Ele considera o presidente incorruptível (“Chávez sairá do governo com uma mão na frente e outra atrás”), mas indigna-se com a corrupção generalizada no país, de alto a baixo da escala social, que diminuiu um tanto, mas permanece grave: “A corrupção é um câncer na Venezuela”. Flores também cita os progressos na saúde e na educação como os principais avanços recentes no país. Acha que o socialismo bolivariano vencerá, para o bem do povo, apesar da guerra muitas vezes suja que a oposição faz contra as ações do governo. Flores cita um exemplo: para melhorar a iluminação pública, o governo resolveu trocar as lâmpadas antigas por outras melhores. O presidente anunciou a novidade em entrevista coletiva. Não demorou muito para correr um boato de que, junto com as novas lâmpadas, seriam instaladas nos postes câmaras através das quais o poder público vigiaria os cidadãos para perseguir os opositores... [Ouvindo a história, entendi o temor daquela senhora no ônibus...]


Outro que justifica a personalização da figura do Coronel Chávez é o brasileiro Luiz Bassegio, secretário nacional da Pastoral dos Migrantes, que esteve na Venezuela no final de abril para participar da 5ª Cúpula da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). “Isso se deve ao messianismo do povo, que precisa da figura de um salvador da pátria”, argumenta. Para Bassegio, a revolução de Chávez sairá vitoriosa por ter um tripé em que se apoiar: o exército, os jovens e o dinheiro do petróleo. Na 5ª Cúpula, os representantes dos movimentos sociais, conta o brasileiro, tiveram tanta voz e vez quanto os chefes de Estado presentes. Ele vê, entretanto, um problema: ao contrário do que acontece no Brasil, o governo procura apoiar as iniciativas populares, mas os movimentos sociais não são organizados na Venezuela. Estão engatinhando.


SOCIALISMO
Chávez é chamado ironicamente pela imprensa oposicionista por termos como “Yo-El-Supremo” e “El Gran Opinador”. Algumas de suas atitudes soam ditatoriais e demagógicas e recebem saraivadas de críticas. Como a reprimenda ao governador de Sucre, Ramón Martinez, que foi publicamente criticado pelo presidente por ter manifestado opiniões não muito afinadas com o espírito revolucionário do governo. Martinez logo se retratou, garantindo estar ao lado da revolução. Outra: seu discurso declarando que os militares deveriam ser instrumentos da revolução bolivariana – muito atacado por afrontar, segundo a oposição, a função constitucional das Forças Armadas.


No campo das atitudes de aparência demagógica, há um fato curioso: Chávez determinou que não se sirva água às autoridades durante as cerimônias oficiais. Alegou que é um privilégio desnecessário, um indício dos “velhos costumes burgueses incrustados nas instituições” que a revolução socialista deve destruir. Depois de cinco horas de discurso – também nesse ponto, Chávez segue o exemplo do amigo Fidel [e agora me lembro de uma inscrição ofensiva que vi no banheiro de um restaurante: “Chávez maricas ama a Fidel”] – ele é capaz de interpelar alguém da platéia que pretenda sair à francesa. Afinal, se ele agüenta ficar ali falando durante horas para o povo, o povo tem que agüentar ouvi-lo.


Suas pregações são de um socialismo radical, que enche de esperança os desvalidos e de temor a elite econômica. A situação na Venezuela parece ser de um embate entre esperança e medo. O modelo apresentado é antigo, polido de um brilho novo por um governante democraticamente eleito, em que pesem as acusações de manipulação eleitoral que os opositores nunca deixam de fazer (razão pela qual, aliás, os partidos oposicionistas recusaram-se a participar das últimas eleições legislativas, possibilitando a formação de um parlamento totalmente favorável a Chávez).


Para os milhões de pobres, miseráveis, favelados, o povo miúdo que sofre há séculos, uma pequena esperança pode ser bastante, e ouvir alguém de cima que fale e grite e brigue com o mundo apresentando-se como defensor dos pobres é um enorme alento. Um possível fracasso, por outro lado, não mudará muito para quem sempre viveu na desgraça.

A revolução é séria. Enquanto a oposição interna é incapaz de conter a marcha revolucionária, a oposição externa, capitaneada pelos Estados Unidos, tenta com dificuldade minar a possível força de Chávez na liderança de uma onda socialista na América Latina. O caminho bolivariano é apresentado claramente, sem rodeios, rumo a um socialismo igualitário que, supostamente, deverá afinal desfazer as históricas injustiças sociais do país, que são as mesmas de quase todo o continente.


“Direito de admissão” e “violação de direitos trabalhistas”
No comércio de Caracas, o olhar de um brasileiro pode encontrar coisas curiosas que refletem hábitos antigos de discriminação e atitudes novas de autoritarismo. É comum haver na entrada de algumas lojas uma placa de evidente ranço discriminatório com os dizeres: “Se reserva el derecho de admisión”, indicando que nem todo mundo pode entrar no estabelecimento. O uso de placas com frases como essa é comum em alguns países de “primeiro mundo”, mas parece ainda mais chocante num lugar que se pretende socialista. Por outro lado, algumas lojas apresentam coladas na porta ou na vitrine um enorme e constrangedor adesivo fixado por fiscais do Ministério do Trabalho: “Esta empresa viola os direitos laborais e sociais de seus trabalhadores e trabalhadoras”. A guerra pelos direitos sociais aponta assim alguns inimigos para execração pública.