É fato que, quando um ser humano nasce, porta um gênero biológico convencionado, definido primariamente como masculino ou feminino de acordo com a aparência de seus órgãos genitais. É certo, também, que seres humanos carregam diferentes cromossomos, e que, na genética humana, foram identificados os cromossomos sexuais, classificados como XX para os indivíduos do sexo feminino e XY para os do sexo masculino. Ou seja, há uma diferença biológica que determina o que convencionalmente se chama de indivíduo do sexo masculino ou feminino. Claro ainda que, anatomicamente, a distinção pode ser bem mais complexa, porque os órgãos genitais têm apresentações diferenciadas quase ao infinito (incluindo os genitais das pessoas chamadas intersexo, com características intermediárias em relação aos dois sexos), mas, na grande maioria dos casos (cerca de 99%), é possível distinguir anatomicamente um ser humano conforme essa distinção binária de sexo (feminino e masculino).
Entretanto, os papéis sociais destinados a indivíduos com uma ou outra carga genética não estão diretamente relacionados ao gênero biológico. Eles são social e culturalmente definidos. Dizer que “homem não chora” não decorre de um determinismo biológico, é uma definição cultural. Defender que “lugar de mulher é na cozinha” não tem relação com o sexo biológico, mas com uma designação social. Quando Simone de Beauvoir diz que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, obviamente, não quis dizer que a mulher não nasce biologicamente definida como tal, mas sim que seu papel social de mulher é construído culturalmente.
O papel social e o “comportamento esperado” de um homem e de uma mulher não são intrínsecos ao gênero biológico, mas são cultural e socialmente definidos. Numa sociedade machista, a mulher terá sempre um papel social inferior. Portanto, é possível e desejável lutar por uma mudança cultural que promova a igualdade entre os gêneros biológicos, de modo que as funções sociais de cada um não sejam pré-determinadas culturalmente e que tanto homem quanto mulher possam exercer qualquer papel social que desejem.
No campo da afetividade, a questão é ainda mais complexa. Ao contrário do que possa dizer o senso comum, a afetividade amorosa e a atração sexual também não são biologicamente pré-determinadas. As pessoas podem sentir atração e desejo sexual tanto por alguém do mesmo sexo quanto do outro. Não há uma relação direta, pré-determinada, entre sexo biológico e orientação sexual. Entretanto, existe, em diferentes tempos e lugares, maior ou menor compreensão e aceitação da possibilidade de que um indivíduo de determinado gênero biológico sinta atração sexual por alguém do mesmo gênero (o que sempre existiu, em todos os tempos e lugares, porque é uma das possibilidades da natureza humana).
Entretanto, a cultura predominante definiu previamente de modo binário a sexualidade humana, o que é de um reducionismo atroz e completamente avesso à realidade concreta. Se, do ponto de vista biológico-cromossômico, pode caber esse binarismo na maioria dos casos, ele é totalmente inadequado no que diz respeito à afetividade. Porque a afetividade humana é infinitamente mais rica e variada do que esse binarismo.
Ademais, há a questão da identidade de gênero, que diz respeito ao modo como a pessoa identifica a si mesma. Alguém pode identificar-se como mulher, ainda que tenha genitália masculina e heteroafetividade. Essa é a inesgotável diversidade humana, nada binária! Assim como há homens com genitália masculina, há homens com genitália feminina, e vice-versa. E variações intermediárias.
Por conta da opressiva imposição cultural, mesmo pessoas que não se encaixam no binarismo predominante são levadas a tentarem se “encaixar” nele, para alcançarem alguma aceitação social. É o caso de pessoas que se veem, por exemplo, como “homem em corpo de mulher” e, tão frequentemente, buscam uma transformação corporal para adequar o corpo à mente. É incrivelmente maldosa essa imposição social que faz a pessoa autorrejeitar-se, pois o desejável seria que tanto ela própria quanto a sociedade entendessem e aceitassem que não existe “homem em corpo de mulher”, mas uma infinidade de identidades que não precisam encaixar-se nesse binarismo. Um ser humano pode ter genitália masculina ou feminina, corpo biológico de “homem” ou de “mulher”, inclinação afetivo-sexual para homens ou mulheres, sem que seja necessária uma “correspondência” binária prévia. Para o bem da humanidade, é preciso que haja a compreensão desse fato. É triste pensar que alguém se sinta inadequado porque seu corpo não corresponde à ideia que a sociedade exige de alguém com sua aparência ou genitália, ainda que não seja condizente com seus afetos, desejos e identidade. Quantas pessoas não se mutilam e transformam artificialmente seus corpos para se adequarem a essa imposição social! É triste.
Num panorama ideal, a sociedade deveria aceitar, definitivamente, que há inúmeras identidades e afetividades. Não importa como seja o corpo biológico: a sexualidade e a afetividade humanas estão muito além da divisão animal entre “macho” e “fêmea”. A infinita variedade humana é legítima e natural e precisa ser aceita. Há seres humanos biologicamente “machos” que não se inclinam aos papéis sociais previamente destinados ao macho, ou que têm atração sexual por homens; há mulheres que têm pênis, há homens que possuem vagina e útero. E essas variações são uma riqueza do gênero humano, são normais e naturais e devem ser socialmente aceitas e respeitadas. A superação do binarismo será um sinal da evolução cultural da humanidade.
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