Que tipo de homem queremos formar?
Tomás
Barreiros
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo busca indicar mudanças necessárias na educação para que
se consiga formar um determinado tipo de educando: autônomo, crítico, consciente
e responsável e, portanto, livre. Tem como pano de fundo a situação do sistema
educacional brasileiro e como pressuposto a atual obrigatoriedade legal da
educação formal.
2 A ESCOLA TRADICIONAL
Desde que foi institucionalizada, na Idade Média, do modo que a
conhecemos e vivemos até hoje, a escola tem tido um papel fundamental na
transmissão não só do conhecimento estabelecido, mas sobretudo dos valores
sociais. Nesse sentido, a escola, muito mais do que ensinar o conhecimento
acumulado, no tempo e no espaço em que está inserida, forma a personalidade dos
alunos com base nesses valores. Com isso, a escola, historicamente, tem
cumprido um papel de perpetuadora e legitimadora de determinados valores e
concepções sobre o saber e o conhecimento. Nesse sentido, lembra Giroux que
[...] las escuelas no se limitan
simplemente a transmitir de manera objetiva um conjunto común de valores y
conocimientos. Por el contrario, las escuelas son lugares que representan
formas de conocimiento, usos lingüísticos, relaciones sociales y valores que
implican selecciones y exclusiones particulares a partir de la cutura general.
Como tales, las escuelas sirven para producir y legitimar formas particulares
de vida social. Más que instituciones objetivas alejadas de la
dinámica de la política y del poder, las escuelas son de hecho esferas
debatidas que encarnan y expresan una cierta lucha sobre qué formas de
autoridade, tipos de conocimiento, regulación moral e interpretaciones del
pasado y del futuro deberian ser legitimadas y transmitidas a los estudiantes.
A escola mudou muito pouco ao longo dos séculos. A própria estrutura
física de muitas escolas atuais guarda grande semelhança com as escolas
medievais. Embora tenha havido progressos notáveis nas teorias relacionadas às
Ciências da Educação, mudando conceitos antes arraigadas a respeito da prática
educativa, ao reflexos dessas teorias na ação dos professores na sala de aula
têm sido muito variados em profundidade e extensão, de modo que a escola
continua a perpetuar alguns males que precisam ser eliminados.
A escola tem sido muitas vezes uma instituição “criminosa”, no sentido de
que se dedica, de certa forma, a fazer mal aos estudantes, deformando-os. Ao
afirmarmos isso, não dizemos que a escola é inútil ou desnecessária ou que a
instituição escolar deva ser combatida em si – longe disso. A escola é
necessária e indispensável na atual estruturação social, e é isso mesmo que
amplia a gravidade dos crimes que a escola têm cometido ao longo da história. O
que se trata de fazer é identificar os males da escola atual para que seja
possível empreender mudanças que façam da escola um espaço de formação para a autonomia,
a liberdade, a consciência e a responsabilidade.
3 ALGUNS MALES DA ESCOLA
A seguir, elencamos alguns dos “crimes” que têm sido perpetrados pela
escola. Para as considerações acerca desses males recorremos especialmente a
Edgar Morin, que faz profundas críticas a muitas das concepções que têm
alimentado as práticas educativas, em sua obra Os sete saberes necessários à educação do futuro (São Paulo:
Cortez, 2007), e cujas idéias fundamentam alguns dos temas aqui apresentados.
3.1 A ESCOLA
TRATA IGUALMENTE OS DESIGUAIS.
O sistema educativo formal é voltado para a educação massiva, que trata a
todos igualmente, ainda que desiguais. A escola despreza e desconsidera as
diferenças. O sistema educativo em vigor despreza habilidades específicas dos
educandos. Estruturada primordialmente como meio de preparação para a vida
social e do trabalho, a escola desconsidera aptidões, pendores e habilidades
diferentes daquelas que possibilitem a formação de um educando para um
determinado perfil limitado de egresso do sistema educacional.
A educação escolar formal é concebida para um determinado padrão médio de
estudante. Tanto aqueles que estão muito abaixo desse padrão quanto os que
estão muito acima são considerados inadequados no ambiente escolar. Se um aluno
tem grandes dificuldades, por exemplo, com a Matemática, será sempre
desprezado, considerado incompetente e o mais das vezes reprovado nos sistemas
de avaliação escolar, ainda quando tenha habilidades e aptidões tais que possam
fazer dele futuramente, por exemplo, um literato excepcional.
Do mesmo modo, um aluno que estiver num nível muito elevado em relação
aos colegas será considerado um “desencaixado”, fora de lugar, e a escola não
saberá lidar com ele. A escola tem como pressuposto que todos devem ser
formados conforme o mesmo conjunto de conhecimentos e devem ter as mesmas
habilidades médias. Metaforicamente, a escola pretende que todos os estudantes,
por mais diferentes que sejam, para o bem o para o mal, sejam colocados na
mesma “fôrma”, da qual saiam iguais. Este se constitui num dos mais nefastos
“crimes” da escola, que mata a diversidade, a criatividade e o desenvolvimento
de aptidões e habilidades não previstas no esquema educacional formatado pela
escola.
3.2 A ESCOLA
BASEIA-SE NUMA CRENÇA DOGMÁTICA NO PODER DA RAZÃO COMO ÚNICO VÁLIDO E DIFUNDE
ESSA CRENÇA
Calcada na noção positivista da superioridade da razão, a escola difunde
uma crença dogmática num suposto poder da razão em tudo solucionar. Assim, tem
sistematicamente desprezado aspectos que não sejam o cognitivo. Em que pese a
existência e a difusão de diversas correntes teóricas que defendem a
consideração holística do educando, como ser físico, intelectual, emocional,
espiritual e afetivo, a prática escolar continua longe de valorizar todos esses
aspectos na formação do indivíduo.
3.3 A ESCOLA
UTILIZA UMA DEFINIÇÃO AUTORITÁRIA E REDUCIONISTA DO QUE É O SABER RELEVANTE
Ligada à questão anterior, está a idéia de que só a escola detém o saber
legítimo. É ela, antes de qualquer outra instituição, quem define socialmente o
que é saber relevante, desprezando outros inúmeros saberes que têm fundamental
importância fora do ambiente da escola. Conhecimentos não institucionalizados
pelos padrões da escola são desprezados por não se adaptarem ao esquema
pré-formatado definido pela escola. Assim, a escola atribui valor e define
autoritariamente o que é o saber relevante. Isso fez, por exemplo, que o estudo
da Filosofia fosse quase totalmente afastado da escola, quando o conhecimento
filosófico deveria figurar entre os mais relevantes. A compartimentação do
conhecimento em disciplinas isoladas é um dos aspectos nefastos dessa
concepção.
3.4 A ESCOLA
ALHEIA-SE DOS PROBLEMAS REAIS DA SOCIEDADE.
Amarrada numa camisa de força criada pela divisão arbitrária das ciências
e do conhecimento, a escola tem difundido um ensino em boa parte desligado da
realidade do meio em que está inserida. Não se propugna aqui um ensino
totalmente utilitário, mas que todo o conhecimento, teórico ou prático, esteja
relacionado à realidade dos estudantes. A “ciência” transmitida na escola deve
sempre que possível ter ligações com a realidade do educando, de modo que tudo
que se ensine, mesmo as questões teóricas mais abstratas, possam ser
relacionadas à realidade daquele que aprende, de modo a poder tornar-se mais
facilmente em conhecimento significativo.
3.5 A ESCOLA
PROMOVE A MORAL DO “MERECIMENTO” BASEADO EM HABILIDADES E NÃO NO CARÁTER, PARA
A QUAL IMPORTA MAIS SABER FAZER DO QUE SER
O sistema de premiação e punição da escola, que aprova e reprova conforme
o aluno “aprenda” ou não um determinado conteúdo, promove uma espécie de moral
do merecimento baseada nas habilidades do aluno, sem se importar com a formação
do caráter. Para a escola, mais importa que o aluno seja capaz do que seja bom.
Para ela, importa apenas que o aluno “saiba”, independentemente do uso que faça
do saber.
3.6 A ESCOLA
ENSINA E PROMOVE A SUBMISSÃO, SENDO AVESSA À DISCORDÂNCIA
A escola afirma, desde sua estrutura física, a necessidade de submissão.
Ela rechaça a discordância, a dissensão, o pensamento contestador. Na escola, a
verdade é absoluta, e o educando deve absorvê-la sem contestação. Essa noção
enrigece o conhecimento e atrasa e dificulta a evolução do pensamento.
Esses são alguns dos males da escola que dificultam a formação de um
educando autônomo, livre, consciente e responsável.
4 UMA OUTRA ESCOLA
Os desafios do tempo presente exigem uma escola diferente, cujo papel não
seja apenas transmitir um conteúdo pré-estabelecido e engessado por concepções
ultrapassadas. A escola deve preocupar-se em formar o educando para a autonomia
e a crítica. Para isso, precisa estimular e aluno a ser sujeito de seu processo
de aprendizagem. O principal ensinamento que o aluno deve receber na escola é,
antes de tudo, o que lhe possibilite pensar por si próprio. O ensino deve ser
sempre crítico, no sentido que o estudante precisa ser incentivado, estimulado
e instruído a analisar criticamente tudo que lhe é oferecido para a construção
de seu conhecimento. Nesse sentido, ele precisa ter noções da validade moral do
conhecimento que lhe é transmitido, para que seja capaz de avaliar o uso que
deverá fazer dele. A escola precisa livrar-se da noção do saber pelo saber,
independentemente das considerações éticas a respeito do que se conhece.
Os professores precisam estar sempre atentos à realidade em que está
inserida a sociedade da qual fazem parte seus alunos. É imprescindível que o
conhecimento seja relacionado com o mundo que cerca o estudante, não apenas
para que lhe seja facilitada sua aprendizagem significativa, mas para que ele
possa usar os conhecimentos adquiridos na escola para atuar no mundo que o
cerca. A partir da possibilidade de tornar-se sujeito de seu próprio
desenvolvimento e do desenvolvimento da comunidade da qual faz parte, o aluno
precisa ter despertada sua capacidade de autonomia, para buscar sempre o
conhecimento relevante que lhe possibilite ser agente de transformação – a começar
pela própria transformação, até a transformação do meio em que vive.
Outra tarefa primordial da escola é despertar a consciência do educando.
O aluno precisa perceber-se como ser-no-mundo e ter noção de seu papel na
construção do próprio conhecimento e no uso desse conhecimento para a
transformação da sociedade. É de fundamental importância que o aluno seja capaz
de perceber-se como agente na construção de seu conhecimento e seja capaz de
avaliar as conseqüências de suas atitudes em relação à sua construção como ser
humano, em todos os aspectos (intelectual, moral, afetivo etc.).
Do ponto de vista do “conteúdo” a ensinar (aqui entre aspas, pois na
realidade tudo que se ensina tem um conteúdo – político, social, moral etc.), a
escola precisa caminhar urgentemente na direção da visão holística do
conhecimento, evitando delimitar o saber em “compartimentos estanques”, como se
o conhecimento pudesse ser separado arbitrariamente. No que diz respeito ao
currículo, é necessário preocupar-se com a oferta, ao educando, de conteúdos
voltados à inserção do aluno educando no mundo como sujeito e agente do
desenvolvimento da sociedade, incluindo também o mundo do trabalho, mas não só
nem principalmente voltado para ele – nesse sentido, se o aluno for preparado
para ser sujeito autônomo, consciente, livre e responsável na construção de seu
conhecimento e na sua relação com a sociedade, saberá enfrentar as mudanças que
certamente virão no mundo do trabalho e, mais ainda, promover nele as mudanças
necessárias.
5 CONCLUSÃO: UMA UTOPIA?
Tal concepção da escola pode parecer utopia inatingível. Entretanto, é
preciso ressaltar que são precisamente as utopias que apontam o norte das
conquistas da humanidade. Diversas teorias da aprendizagem têm ressaltado a
necessidade de considerar o educando como sujeito ativo na construção de seu
conhecimento, e essa idéia aos poucos vai penetrando na prática escolar. Assim
também, a idéia de um ensino libertador, no sentido de que cria indivíduos
autônomos, críticos, conscientes, responsáveis e livres, precisa impregnar
gradativamente a prática escolar. É claro que o educando precisa ser inserido
na sociedade de acordo com seus valores, até que seja capaz de adquirir
autonomia e espírito crítico, consciência e responsabilidade. Para isso, é
fundamental o papel de educadores dedicados à tarefa de ajudar na condução do
aluno ao necessário amadurecimento que lhe permita chegar à liberdade, que é
fruto da consciência e da responsabilidade. Vale evocar aqui, mais uma vez, uma frase de Giroux: “[...] si los
profesores han de educar a los estudiantes para ser ciudadanos activos y críticos,
deberían convertirse ellos mismos en intelectuales transformativos” (op. cit.,
p. 22).
É desses “intelectuales transformativos” que precisa a educação para
mudar e tornar-se uma educação adequada para os enormes desafios do terceiro
milênio.
REFERÊNCIAS
GIROUX, 1990: 177, apud PALOMARES, F. F. El
estudio sociológico de la educacíon. In Sociología de la Educación, p. 21.
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