Tuesday, February 01, 2011

“Dossiê Battisti”: o erro fatal

A Gazeta do Povo encerrou a série de reportagens do “Dossiê Battisti” escritas na Itália. E na edição de 23 de janeiro ficam desvelados os erros da publicação no ponto de partida. O texto “A ‘culpa’ dos franceses” indica o que está na cabeça da repórter: existe um “lado certo” e um “lado errado”, e Battisti está do lado errado. Quem define qual o lado “certo” e qual o “errado”? A divisão maniqueísta é dada pela visão prévia do jornal, que já no ponto de partida da série de reportagens trata Battisti como criminoso comum, antes de qualquer apuração - posição prévia que influencia toda a cobertura.

Ao menos, desta vez, aparece algum contrapeso. A matéria cita intelectuais franceses que defendem a inocência de Battisti e uma historiadora que alega que as assinaturas de Battisti nas procurações ao advogado que o defendeu ante a justiça italiana eram falsificadas.

A edição dá voz também a uma das advogadas de defesa de Battisti no Brasil, sob o título “Reação da Itália mostra que Lula estava certo, diz defesa”. E também ouve Arrigo Cavallina, identificado como “um dos idealizadores do PAC [o movimento Proletários Armados pelo Comunismo, do qual Battisti fazia parte] e espécie de ‘mentor’ de Cesare Battisti”. Um trecho: “Cavallina diz que a mídia e o governo italiano exageram ao falar do caso, já que há outros italianos condenados que também não foram extraditados pela França.”

Entretanto, o mais curioso, o indicador do erro fatal, é o “Depoimento” da repórter enviada à Itália. A jornalista acredita que Battisti é criminoso porque, na Itália, o vulgo assim pensa. “Será que um país inteiro está errado e a decisão de um presidente - que já virou ex - é que está certa?” - pergunta ela, encerrando o texto. Incrível. Antes de tudo, porque ela ficou uma semana em algumas poucas cidades da Itália - algo absolutamente insuficiente para ter um panorama do pensamento dominante no país todo. Mas, pior, por tomar como verdade absoluta a opinião da maioria.

Se a mesma jornalista fosse enviada ao Irã, certamente voltaria qualificando Sakineh Ashtiani de adúltera, criminosa, assassina. Afinal, a quase unanimidade das autoridades e do povo iraniano assim pensa. E se fosse à China ou à Coreia do Norte, voltaria tecendo loas às ditaduras que lá imperam, pois nada ouviria contra. Ou não, nesse caso, já que, dada a linha editorial do periódico, provavelmente já partisse de uma posição previamente tomada...

Este é o erro: não se faz bom jornalismo a partir de uma posição prévia que se busca apenas confirmar, nem com base na opinião do vulgo. B0m jornalismo é feito com apuração e apresentação de fatos e dados, bem como da palavra de fontes qualificadas, como especialistas tanto quanto possível neutros em relação ao caso que se apura. Se em março de 1994 a Gazeta tivesse feito um “Dossiê Escola Base” com o mesmo espírito, teria condenado previamente os proprietários da escola - naquela época, “o país todo” tinha certeza de que eles eram culpados... Na deontologia jornalística, não cabe o jornalista pautar-se pela opinião da maioria. Por vezes, é preciso ir contra um país inteiro. Não é a visão da maioria que indica o que é “verdade” ou “certo”.

Repito: não defendo Battisti, nem tenho posição formada quanto à extradição (tema tão complexo que dividiu o STF). Mas defendo, sim, um jornalismo de qualidade (o que, diga-se, não é raridade na Gazeta do Povo, um jornal realmente bom no panorama do jornalismo brasileiro).

2 comments:

eriel said...

faltou dizer que ela tentou "desqualificar" a posição do presidente Lula fazendo evidência à sua situação de ser, hoje, ex-presidente - menção que nada tem a ver com o fato por ela comentado.

Tomás Barreiros said...

É verdade, você tem toda razão!