Cemitério da
Consolação, São Paulo. Uma tarde ensolarada em meados de maio de 1984.
Minha alma, então no
frescor da fé, vaga entre as tumbas, envolta na oração e na contemplação da
arquitetura mortuária, por vezes tão complexa quanto o mistério que representam
seus monumentos: beleza, horror, leveza, tormento, despojamento, luxo...
díspares ideias concretizadas no tijolo e na pedra.
Próximo ao corredor
dos fundos, sombreado por comprida fileira de árvores, um túmulo se ressalta
pela profusão de flores de um enterro recente. As flores da despedida, já todas
murchas, símbolos da brevidade da vida que passou e se foi e fugiu daquele
corpo que agora repousa sob a laje.
A curiosidade me
aproxima da lápide. Procuro os textos das guirlandas, os nomes, os resquícios de
homenagens. E identifico então o nome com o qual fora marcada a existência,
sempre inapelavelmente curta, daquela pessoa que agora era apenas lembrança
coberta por silêncios, pedras e flores murchas: Maria José Dupré.
Maria José Dupré! Ela
mesma, a célebre escritora do livro cujo título tanto dizia sobre minha própria
vida: “Éramos seis”...
Nunca li o romance,
talvez por falta de coragem. Porque nós também, minha família, éramos seis:
pai, mãe e quatro filhos. Naquele ano agora distante, ainda estávamos vivos,
todos (hoje, metade já partiu). Mas se ainda “éramos” seis, não mais “estávamos”
seis... Os caminhos já se haviam bifurcado. As escolhas, as diferenças, as
dissensões já tinham separado as vias e apartado corpos, almas e vontades.
Passeando, absorto, olhar
e pensamentos pelas flores fenecidas, percebi que algo se distinguia entre elas.
Aproximei-me e identifiquei um cartão. Era um cartão endereçado à falecida!
Receando embora ofender
a dignidade da morte, as mãos meio trêmulas, colhi o papel colorido, abri-o e
li. Li aquelas palavras todas, reli, li mais uma vez, sofregamente, sentindo constranger-me
o coração a cada frase. E chorei, chorei copiosamente!
Era um cartão da neta
para a avó – provavelmente, escrito pouco antes do falecimento. Trazia um
sentidíssimo pedido de perdão por um suposto abandono, por um afastamento que a
missivista afirmava e reafirmava não ser real, ao contrário do que imaginava a
avó!
Teria a destinatária
lido a mensagem? Ou a indesejada das gentes a haveria chamado no percurso entre
a postagem e a entrega? Nunca o soube... Saberei um dia?
Vacilei entre
devolver aquele papel à tumba e seu silêncio – sabendo que assim o estaria
destinando ao mesmo inexorável perecimento que acaba por cobrir tudo e todos –
ou guardá-lo. Sim, guardá-lo comigo, para sempre, como preciosa lembrança, como
relíquia do tempo em que ainda “éramos seis”, como alerta exemplar da dor de
alguém que se lastima por afastar-se dos que o precederam no sangue...
Naqueles tempos de fé
viva, vívidos também eram meus escrúpulos místicos. Decidi então deixar ali o
cartão, para morrer junto com as flores, respeitando assim o que provavelmente
devia ser o desejo da mão que o tinha misturado aos crisântemos...
Jamais essa lembrança
se apagou da minha memória. Construí mesmo a imagem da neta entregando ao
túmulo – chorosa, coração pesado, alma em remorso – o cartão que não chegara ao
destino... Ao longo desses anos todos, recordei a imagem e o sentimento que me
revisitou, dolorido, sempre que ouvi ou li ou pensei sobre o livro ou sua
autora.
E apenas agora,
passados mais de 32 anos, escrevo para contar esta história. Ainda hoje,
imagino encontrar a neta, a autora daquele cartão que me marcou por décadas, e
conversar sobre o fato, perguntar, conhecer a história por trás dele.
Nunca li o romance, talvez
por falta de coragem. Tê-la-ei algum dia, ainda mais agora, quando já não somos
seis?